Euclydes Lacerda de Almeida - Memórias e Reflexões
Aprresentação

Se eu fosse líder de uma poderosa seita de adoradores do demônio, ia morar num apartamentinho mixuruca desses?


Foi com essas palavras e um sorriso sarcástico no rosto que Euclydes Lacerda de Almeida me recebeu, em uma manhã de sábado.

O “apartamentinho” ficava na Zona Norte do Rio de Janeiro, numa rua pacata, silenciosa, arborizada e ecumênica. Nas redondezas, convivem de forma aparentemente harmoniosa uma academia de yoga, um centro espírita e uma cartomante.

Mais que modesta, a decoração era mínima. A quantidade de livros no armário da sala e em uma das paredes de um pequeno corredor chamava a atenção, tanto pelos títulos variados tratando dos mistérios da Maçonaria, Teosofia e Rosacrucianismo, entre outros, quanto pela presença ostensiva de uma Bíblia Sagrada (“Que eu leio sempre!”, enfatizou ele) e de obras sobre o Vaticano e o catolicismo.

A figura, por sua vez, chamava atenção pelo físico de aspecto frágil, bastante magro, com óculos de modelo antigo de lentes escurecidas cobrindo os olhos. Tinha sempre um cigarro à mão, mas sabia bem que não se tratava de um hábito inofensivo. "Já sobrevivi a quatro ataques cardíacos e um câncer de próstata", disse, sem orgulho.

Nos anos 1970, os iniciados em Thelema, sistema filosófico-mágico criado pelo inglês Edward Alexander “Aleister” Crowley em 1904, o chamavam de frater (“irmão”, em latim) Zaratustra, nome tirado do clássico de Friedrich Nietzsche. Era o motto (“lema”, também conhecido pelos thelemitas como “nome mágico”) sob o qual atuava Euclydes Lacerda de Almeida.

Demorou três anos até Euclydes concordasse em falar. Em 2005, a primeira vez que tentei obter uma entrevista, por intermédio de um amigo em comum, foi rechaçada sem que ele nem pestanejasse. Considerava não ter nada a dizer que pudesse interessar a alguém, ainda mais sobre “esses assuntos”, sobre os quais ele já havia escrito bastante a respeito. Voltei a abordá-lo, por intermédio de outro amigo, no ano seguinte, também sem sucesso.

A intenção inicial era que o depoimento dele fizesse parte de um livro abordando de forma objetiva e o mais documentada possível as ligações de Raul Seixas e Paulo Coelho com os princípios de Aleister Crowley – que hoje Coelho rejeita. A ideia surgiu de minha própria breve experiência com uma organização de cunho thelêmico, há pouco mais de dez anos, quando cheguei a ser apresentado a Euclydes por meus instrutores. Precisei lembrá-lo deste detalhe, quando nos reencontramos.

Em 2008, com o lançamento de dois livros de jornalistas de peso sobre Paulo Coelho, a biografia feita por Fernando Morais (O Mago) e a análise da obra musical do escritor feita por Herica Marmo (A canção do mago), o nome de Euclydes, antes restrito aos círculos ligados à Thelema, foi finalmente trazido para o grande público junto ao de Raul Seixas e Paulo Coelho – a quem instruiu diretamente, por determinação de Marcelo Motta.

Apesar de a maneira como a jornalista o apresentou tenha sido equilibrada, o mesmo não se pode dizer de Morais, que resume Thelema a “adoração do demônio” e seus propagadores, a “adoradores do demônio” ou, ainda mais simplesmente, satanistas. Imaginei que ele rejeitaria a alcunha, e pensei em tentar obter seu depoimento para refutar as descrições feitas por Morais das práticas realizadas na ordem a título de treinamento mágico. Tentaria vender o trabalho como freelance a uma revista.

No começo de junho, logo em seguida ao lançamento do livro de Morais, entrei em contato com outro amigo em comum, Keron-e (motto) membro, como Euclydes, da ordem thelemica conhecida como Astrum Argentum (A.'. A.'.). Três meses de negociações se seguiram, intermediadas por este amigo. Sentia que desta vez, ele estava prestes a ceder, ou teria dispensado a ideia logo de início, como das outras vezes. A resposta, no entanto, não saía. Cansado das evasivas e impaciente, enviei em 25 de setembro um email curto e grosso, anexando uma notícia sobre um filme a respeito de Raul Seixas que entraria em produção:

Peço que repasse o texto abaixo para o Euclydes analisar, com o seguinte adendo: cansei. se ele não tiver uma resposta até o fim do mês, a proposta, de minha parte, está retirada. entendo que ele tenha todas as considerações a fazer, mas não posso ficar parado, só assistindo o tempo passar.

Como você sabe, tenho muitos projetos em andamento, muitas coisas a fazer... e por mais que essa fosse uma que eu realmente queria fazer, não vou ficar forçando a barra para convencê-lo da importância disso. Achei que ele reconheceria a oportunidade e teria interesse em aproveitá-la. Se não for o caso, sem ressentimentos.

Em 10 de novembro, recebi o recado simples de Keron: “O Euclydes está disposto a conversar com você. Me procure”. No mesmo dia, falei com ele e iniciei o contato direto com o futuro entrevistado. Nos primeiros emails, nos tratávamos formalmente, “sr.”. Logo de saída, tentou se esquivar:

Pode ser por e-mail mesmo. Mande as perguntas e eu responderei”.

Expliquei, pacientemente, que só realizo entrevistas por email quando não há outro meio disponível. Dada a complexidade do assunto, exigiria várias idas e vindas, perguntas e réplicas, o que tornaria o processo muito extenso e cansativo. Além disso, esclareci, me preocupava em ter o registro em áudio dos encontros, para evitar inconsistências de minha parte. Ele então baixou a guarda, passou a me tratar por Marcio. A primeira sessão foi na manhã do dia 22 de novembro, um sábado. Foram cinco ao todo, com cerca de três horas de duração cada, que se estenderam por dezembro e o começo de janeiro.

Ao longo de 2009, as tentativas subsequentes de vender a matéria como serviço freelance não foram bem sucedidas. Continuamos nos encontrando para conversar e passamos a discutir a produção de um site em que ele pudesse apresentar suas reflexões e disponibilizar material de seu vasto arquivo. Até que recebi, no dia 28 de junho de 2010, a informação de sua morte, quatro dias antes. Decidi dar prosseguimento à ideia de colocar no ar um site sobre Euclydes, agora in memoriam.

Como nossos diálogos não foram registrados integralmente, os três textos que serão apresentados foram produzidos com base no material efetivamente gravado por mim em áudio digital e transcrito por uma auxiliar especialmente contratada, sem vínculos com o tema. O presente trabalho não tem a intenção de ser um registro preciso da historiografia do sistema thelemico. Suas informações foram extraídas, essencialmente, das entrevistas e de consulta a algumas fontes básicas como os sites da A.'.A.'. e do pesquisador Peter Koenig, estudioso do que chama de "Fenômeno da Ordo Templi Orientis" (grupo que Crowley comandou por cerca de 40 anos).

Marcio Beck

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