“Friso ainda que futuramente, se for possível, gostaríamos de iniciar uma experiência social semelhante à de Crowley em Cefalu."
Paulo Coelho para Euclydes Lacerda - 18/04/1974
A Recompensa do Gigante
A filosofia de Thelema (Θελεμα, em grego, “vontade”) de Edward Alexander “Aleister” Crowley foi inspirada em um dos capítulos da fantasiosa crônica “Cinco Livros sobre as vidas, feitos heróicos e ditos de Gargantua e seu Filho Pantagruel”, obra do francês François Rabelais na segunda metade do século XVI.
No fim do livro I, o autor narra que ao derrotar um rei inimigo, o gigante conquistador Gargantua oferece a seus principais ajudantes enormes recompensas em terras e dinheiro. A um monge que participara da guerra a seu lado, oferece o controle de toda abadia sob seus domínios, que se estendem até perder de vista. O monge, porém, recusa-se a governar outros religiosos.
“Como posso ser capaz de comandar os outros se nem tenho controle total sobre mim mesmo?”, rebate, e pede que Gargantua permita a construção de uma abadia diferente de todas as outras, onde as pessoas não seriam obrigadas a votos de castidade, pobreza e obediência e poderiam juntar-se ao monastério e abandoná-lo de acordo com sua vontade.
A primeira referência aparece no capítulo 52, “Como Gargantua fez ser construída para o Monge a Abadia de Thelema”. Em seguida, Rabelais conta “Como a abadia dos Thelemitas foi construída e guarnecida” (capítulo 53), descrevendo em minúcias as belezas e riquezas da construção e mostra “A inscrição colocada sobre o grande portão de Thelema” (capítulo 54), que, em forma de poema, trata jocosamente das diversas personas cujas presenças seriam bem-vindas à abadia ou banidas dela. As duas listas são longas.
O autor conta “Que maneira de viver os thelemitas tinham” (capítulo 55), repletas de imagens de abundância, “Como os homens e mulheres da ordem religiosa de Thelema estavam vestidos” (capítulo 56), onde prosseguem as descrições de belezas e riquezas infindáveis. Por fim, “Como os thelemitas eram governados, e de sua maneira de viver”. Lá, proclamava Rabelais, a vida não seria “gasta em leis, estatutos, ou regras”. Não havia horários pré-estabelecidos para dormir, beber, comer, trabalhar ou dormir, nem poderia haver relógios, pois gastar tempo contando-o era um exemplo perfeito de futilidade.
Só havia uma cláusula a ser observada:
Faze o que tu queres.
Pois homens que são bem nascidos, bem criados, e acostumados a companhias honestas, têm naturalmente um instinto que as impele a ações virtuosas e os afasta dos vícios, que é chamado honra.
O resultado deste sistema libertário, segundo a
descrição
do médico e escritor francês, idealizada em meio
à sátira aos costumes
pródigos de determinados monges do século XVI,
seria uma versão ainda
mais romantizada da mítica Camelot dos bretões.
“Nunca foram vistos
cavaleiros tão valorosos, tão nobres e dignos
(...) Nunca foram vistas
mulheres tão apropriadas e belas”.
A partir de 1904, as palavras de Rabelais ecoariam e se tornaram
realidade – não tão romântica
quanto em sua obra – justamente na
Inglaterra. Seu realizador, no entanto, estava longe dos ideais de
nobre cavaleiro medieval preconizados pelo Monge que recebeu a
recompensa de Gargantua.
A história de Crowley é amplamente documentada e frequentemente lida sob vieses negativos. Foi uma personalidade escandalosa para sua época e habitat, a então sisuda e puritana Inglaterra do fim do século 19 – nasceu em 12 de outubro de 1875 – e começo do século 20 – morreu em 1 de dezembro de 1947. Enquanto era vivo, já pesava sobre ele a acusação de satanista, que ora refutava ora incentivava. A definição se tornou indelével depois que suas práticas inspiraram cultos deturpados de suas teses originais, como o da família Manson, responsáveis por crimes bárbaros na década de 1960, e a Igreja de Satã de Anton Szandor La Vey, ícone do hedonismo narcisista que encantou alguns hollywoodianos.
Herdeiro de uma pequena fortuna ao ficar órfão, Crowley chegou à juventude dando provas de voracidade espiritual, intelectual e sexual incomuns. Em Trinity College, Cambridge, onde estudou, conheceu dois jovens que o levaram a conhecer a Ordem Hermética da Aurora Dourada (Hermetic Order of Golden Dawn). Juntou-se em 1898 ao clube secreto de nobres e intelectuais europeus que se dedicava a estudar os mistérios antigos do Egito e práticas de meditação orientais com ramificações filosóficas.
Em pouco tempo, Crowley se destacou no grupo, alcançando os graus mais elevados. Ao chegar no topo, entrou em conflito com os mais antigos da ordem, especialmente com o líder do grupo, o escocês Samuel Liddell Mathers. Expulso, tomou uma atitude impensável nos meios ocultistas, no qual o conhecimento é geralmente considerado como algo reservado a poucos “capazes de lidar com as enormes complexidades da existência”. Publicou, em uma compilação intitulada The Equinox (O Equinócio) todos os rituais da Aurora Dourada, descritos em detalhes, eliminando para sempre o caráter “secreto” de que a ordem até então dispunha.
Não foi uma simples vingança, como muitos sugeriram, mas o princípio de uma mudança de paradigma. Àquela época, a transmissão de conhecimentos básicos, como as relações numéricas entre as letras hebraicas e os números, base da Cabala, era reservado aos “merecedores”. Crowley foi o primeiro a tornar transparente uma organização secreta, cujo maior “ativo” por definição é o sigilo de palavras e gestos de identificação (“de passe”, as populares senhas) e os rituais que praticava.
Insatisfeito com a experiência da Golden Dawn, Crowley criou seu próprio grupo, a Astrum Argentum, com uma estrutura diferente. Os iniciados não mantém contato como grupo, não há reuniões e cada integrante conhece apenas seu iniciador e seus iniciados – pelo menos, em tese. Na organização, aplicava o conceito de Thelema e de magick, que formulou a partir de 1904, em uma viagem ao Egito com a primeira esposa, Rose Kelly. De volta à Inglaterra, Crowley apresentou ao seu instrutor, George Cecil Jones, um livro que disse ter sido comunicado a ele por uma entidade “preternatural” intitulada Aiwass (um fundamental trocadilho com “I was”, eu era) ditado pela essência do escriba dos deuses do Egito, Ankh-f-n-Khonsu, refletindo as palavras dos próprios Ísis, Osíris e Hórus. Jones recebeu a obra com desdém: "Eu não aprecio poesia". Algum tempo se passaria até que adotassem a lei de thelema.
O próprio título tinha uma explicação que desafiava os que ousassem lê-lo: “Liber AL vel Legis sub figura CCXX [220], como entregue por XCIII [93] = 418 a DCLXVI [666]”. O número 220 aludia à quantidade de versos espalhados ao longo dos três capítulos que descrevem as diferentes eras (æons, em grego) da humanidade. O 93 se tornaria um número precioso para os nascentes thelemitas, representando a soma da palavra da Lei, Thelema (Vontade, em grego), e passando a ser usado como saudação. O 418 representava um personagem-chave da trama, e o 666 era o novo título de Crowley, perfeito para chocar a sociedade vitoriana.
A frase tão repetida nas músicas de Raul Seixas, via de regra, é citada fora de seu contexto. Encontra-se no primeiro capítulo do Livro da Lei, na “manifestação de Nuit” (Ísis), o primeiro æon, da energia feminina, que anuncia ser Thelema a “palavra da lei”. Ela afirma que chamá-los (os seguidores desta, presume-se) de “thelemitas” não seria um erro, mas alerta que a palavra conteria três graus, ou facetas: o eremita, o amante e o homem da terra. No original, a frase em questão é Do what thou wilt shall be the whole of the Law. Na tradução de Marcelo Ramos Motta, Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.
Nuit/Ísis explica que se a palavra da Lei é Vontade, a do Pecado é a Restrição. Incentiva os maridos a não recusarem suas esposas, e os amantes a partirem, se assim quiserem. “Não há laço que possa unir os que estão divididos a não ser o amor. Todo o resto é maldição”, sentencia, seguido de um praguejar contra os “malditos”. A deusa continua, dizendo que uma pessoa não tem direito a não ser fazer o que quiser, e que, fazendo isto, não seria contrariado por ninguém. “Pois a vontade pura, desembaraçada de propósito e livre do desejo de resultado, é todavia perfeita”, condiciona, estabelecendo os elementos básicos para que a vontade seja considerada verdadeira dentro do sistema. Pura, desembaraçada de propósito e livre do desejo de resultado.
No segundo capítulo, sob a manifestação de Hadit (Osíris), as palavras se tornam mais ásperas. Neste æon, o poder masculino torna-se proeminente. Surge a divisão entre fortes e fracos, servos e escravos. Surge então outra frase que ecoaria nos ouvidos da juventude de 1970 em diante: “Nada temos com o pária e o incapaz: deixe-os morrer em sua miséria. Pois eles não sentem. Compaixão é vício de reis: pisai o retorcido e o fraco: esta é a lei do forte: esta é a nossa lei e alegria do mundo.”
Adiante, apesar de confirmar que existe uma divisão incontornável entre dominante e dominado, alerta para a possível falsidade das aparências: “Portanto os reis da terra serão Reis para sempre: os escravos servirão. Não há o que deva ser rebaixado ou elevado: tudo é como sempre foi. No entanto, há mascarados, meus servos: pode ser que aquele mendigo seja um Rei. Um Rei pode escolher sua vestimenta como quiser: não há teste seguro: mas um mendigo não consegue esconder sua pobreza”.
O terceiro æon, de Ra-Hoor Khuit (Hórus), é sem dúvida onde se encontram as palavras mais duras. “Que primeiro seja compreendido que sou um deus da Guerra e da Vingança. Eu lidarei duramente com eles”,proclama. Adiante, depois de uma série de instruções de acordo com o espírito enunciado, o irado deus falcão faz uma advertência:
“Não recuses ninguém, mas tu deverás conhecer & destruir os traidores. Eu sou Ra-Hoor-Khuit; e eu sou poderoso para proteger meus servos. Sucesso é tua prova: não discutas; não convertas; não fales demais! Eles que procuram te emboscar, te suplantar, ataca-os sem piedade ou misericórdia; & destrua-os inteiramente. Suave como uma serpente enrodilhada, vire-se e ataque! Seja mais mortal ele! Arraste suas almas para eterno tormento: ria do medo deles, cuspa neles!”
Ao fim do livro, um recado ameaçador, o Comentário. Nele, o mesmo escriba dos deuses que acabara de colocar no papel todas essas mensagens proibia o estudo do Livro, dizendo ser prudente destruir a cópia após a primeira leitura. “Quem desconsidera isto o faz por seu próprio risco e perigo. Estes são os mais terríveis. Todos os que discutem os conteúdos deste livro devem ser evitados por todos, como focos de pestilência”.
Apesar da proibição, ou talvez por causa dela, Crowley foi recebido pelos ocultistas como o “profeta, vate e apóstolo” que se intitulava, supostamente de forma retórica, no Livro da Lei. Passou a comportar-se como tal. Criou sua ordem, a Astrum Argentum (A.'. A.'.), em 1907. Três anos depois, ao publicar um livro em que insinuava, metaforicamente, a utilização da energia gerada pelo ato sexual para a realização de um objetivo específico, dentro de um ritual mágico, foi convidado a ingressar na Ordo Templi Orientis (O.T.O.), organização de origem alemã cujos níveis mais elevados desembocavam na magia sexual.
Para Euclydes, o Livro da Lei marcava, simbolicamente, a época em que o ser humano devia assumir responsabilidade por seus atos, em vez de atribuí-los a poderes superiores. O desenvolvimento completamente novo era uma espécie de religião baseada não no temor do castigo divino ou universal, mas na expressão daquilo que representasse a verdadeira vontade de cada um. Era o segundo rompimento de Crowley com a “velha ordem” da magia, do segredo. O juramento da A .'. A.'., explicou-me, continha a frase “mistério é inimigo da verdade”. “Na primeira vez que li, eu realmente destruí o livro, coloquei fogo. Aí, liguei para o Marcelo e contei o que tinha feito. Ele riu e disse: Vou te mandar outra cópia.”
Assim como ocorreu na Aurora Dourada, Crowley rapidamente dominou o que a O.T.O tinha a oferecer. Tornou-se líder da ordem na Inglaterra, e depois, passou a ameaçar o poder dos prussianos Theodor Reuss e Carl Kellner, que iniciaram a ordem em 1902, adquirindo permissões para estabelecer grupos com base em dois ramos da Maçonaria: os ritos de Mênfis e Misraim e o Rito Escocês Antigo e Aceito. Não demorou até que houvesse um rompimento com o grupo que se recusou a aceitar a Lei de Thelema como base dos trabalhos iniciáticos, e ele reivindicasse para si o título de Cabeça Externa da Ordem (OHO, na sigla em inglês).
Os detratores do bruxo inglês sequer precisavam se esforçar para fuçar motivos para condená-lo como herege, pervertido sexual, drogado. Ele mesmo fornecia os elementos para as acusações, em seus muitos escritos. Sua extensa aubiografia, reveladoramente denominada “Confissões” (Confessions of Aleister Crowley, sem tradução em português), traz detalhamento e distanciamento talvez jamais vistos numa autobiografia. Ou, como ele debochadamente a classificou, uma “auto-hagiografia”, tomando emprestado o termo usado pelos católicos para as biografias de beatos, santos, mártires e demais devotos fervorosos.
Era uma personalidade desafiadora da religião desde a infância, conforme seu próprio relato minucioso. Criado por pais ultrarreligiosos integrantes da seita protestante Irmandade de Plymouth, Crowley se rebelava constantemente e acabou ganhando da mãe a alcunha da qual viria a se “gabar” no meio ocultista décadas depois: a Grande Besta do Apocalipse. Nome perfeito para provocar a sociedade vitoriana, ao qual ele acrescentou camadas e camadas de simbolismos mágicos e numerológicos, relacionando-a ao signo de Leão, outro componente astrológico da famosa “Era de Aquário”, na qual supostamente ocorreria a iluminação espiritual da humanidade.
Na Itália, montou sua versão da Abadia de Thelema, numa vila portuária chamada Cefalu, na Sicília, banhada pelo mar Tirreno. A população, que hoje provavelmente não passa dos 15 mil habitantes, certamente era bem menor em 1920. O local era denominado oficialmente Collegium ad Spiritum Sanctum, onde Crowley e sua então esposa, Leah Hirsig, preconizavam adorações ao sol, exercícios de yoga e outras práticas rituais – algumas envolvendo atos sexuais e outras envolvendo algum tipo de substância inebriante, ainda que fosse o álcool do vinho.
Três anos depois de instalada, já malvista pela comunidade local, a congregação libertária foi abatida pela morte de um de seus estudantes, Frederick Charles Loveday. Retornando à Grã-Bretanha, a esposa dele, Betty Mae Sedgewick, contou ao tablóide (sim, os tablóides já eram o mesmo que hoje na Inglaterra) The Sunday Express a história que todo jornalista sabe que vende: sexo, drogas, magia negra e morte. Ainda que a morte tenha sido causada por uma febre entérica contraída da água de um riacho e o sexo tenha sido consensual entre maiores de idade. Foi expulso da Itália por Benito Mussolini, imediatamente.
Betty Mae lançou ainda um livro, The laughing torso, acusando Crowley de praticar “magia negra”. Crowley respondeu processando-a, bem como os editores e os impressores do livro, mas perdeu. Em 1934, dirigindo-se ao júri, segundo o relato do Sunday Express, o juiz ironicamente chamado Justice Swift (“justiça suave”) foi duríssimo:
“Tenho estado há mais de quarenta anos engajado na aplicação da lei de uma maneira ou de outra. Pensei que conhecia toda forma concebível de perversão. Pensei que tudo que era sórdido e ruim haviam sido apresentadas diante de mim uma vez ou outra. Aprendi, neste caso, que sempre podemos aprender algo mais se vivermos o suficiente. Nunca ouvi coisas tão tenebrosas, horríveis, blasfemas e abomináveis como as apresentadas pelo homem que se descreveu para vocês como o maior poeta vivo”.
Crowley acabou considerado culpado de pagar cinco libras por cartas de Betty Sedgewick que poderiam conter informações importantes a serem usadas no tribunal. Resumindo as palavras do juiz, passou a se intitular “o homem mais pervertido do mundo”. Uma explicação para este tipo de comportamento encontra-se no capítulo 53 de sua autobiografia, quando fala sobre o Bagh-i-Muattar, escrito em 1905, no qual inventou o poeta muçulmano do século 17 Abdullah al Haji, suposto autor do livro, bem como um major anglo-indiano que o traduziu e comentou, o editor que completou o trabalho do militar, que teria sido morto na África do Sul, e até um clérigo anglicano para discutir os temas da obra. Sempre imodesto, ele comentou:
“Este espasmo de gênio é um eloquente retrato de minha mente nesta época. Eu estava absolutamente convencido da suprema importância de devotar a minha vida a obter Samadhi, a comunhão consciente com a Alma Imanente do Universo. Eu acreditava no misticismo. Entendia perfeitamente a essência de seu método e a importância de sua obtenção, mas me sentia compelido a me expressar de formar satírica e (pode parecer a alguns) quase escandalosa. Eu dava testemunho da tremenda verdade eu empilhava ficção em cima de ficção. Eu não sabia. Eu não suspeitava, mas o Bagh-i-Muattar é um sintoma de suprema significância. Eu estava à beira de um desenvolvimento completamente novo.”
Ao morrer, em 1 de dezembro de 1947, seus discípulos na O.T.O. entraram em disputas explícitas e aguerridas pelo poder. Crowley foi ambíguo em suas declarações sobre quem deveria sucedê-lo. Karl Germer, seu secretário particular, era apontado em um documento como seu “agente e representante”. Grady Louis McMurtry e Kenneth Grant, alunos destacados, foram em diferentes momentos apontados como possíveis continuadores do trabalho mágico.
Germer e o suíço Herman Joseph Metzger, líder do grupo da O.T.O. que não havia aceitado a lei de Thelema, promoveram a reunião das duas correntes. Apesar de recusar, em sua correspondência particular, que Grant o considerasse como superior na ordem, Germer se enfurecer com a aproximação deste a outra corrente e expulsou-o, provocou mais um cisma na ordem. Surgia a OTO do ramo ‘tifoniano’, liderado por Grant.
Para simplificar bastante uma longa e complicada história contada com documentos por Peter Koenig em seu site The OTO Phenomenon, após a morte de Germer, houve nova rodada de disputas de poder, das quais Marcelo Motta participou, opondo-se à facção comandada por Grady McMurtry, denominada Califado. Houve ainda uma intrincada disputa pelos direitos autorais das obras de Crowley, constantemente reeditadas mundo afora até o advento da internet, que resultaram, na década de 1980, em processo judicial contra o brasileiro e processo dele contra outros executores literários do inglês. Além dos livros doutrinários de Thelema, a maioria dos quais se encontra disponível gratuitamente online, Crowley legou itens de sucesso comercial, como o baralho de Tarô
Na introdução publicado ao seu Liber 418, trabalho realizado em 1909 com o qual confirmava o Livro da Lei como resultado de uma visão inspirada, Crowley foi taxativo:
“Admito que minhas visões possam não significar a outros o mesmo que significaram para mim. Não lamento este fato. Tudo que peço é que meus resultados convençam os buscadores da verdade de que existe algo realmente digno de ser alcançado, podendo usar métodos mais ou menos parecidos com os meus. Eu não quero liderar rebanhos, ser objeto de admiração de tolos e fanáticos ou o fundador de uma fé cujos seguidores são ecos de minhas opiniões. Eu quero que cada homem abra o seu próprio caminho mata adentro”.
Segundo um integrante inativo de um grupo de caráter thelemico brasileiro, que pediu anonimato, Crowley escondeu a essência do seu pensamento com camadas e camadas de práticas místicas que, realizadas sem o rigor apropriado, podem até ser prejudiciais.
“Tem de tudo, porque ele fazia uma grande miscelânea de conhecimentos. A comparação pode parecer esdrúxula, mas Crowley aplicava ao ocultismo e às religiões o que o Bruce Lee faria décadas depois nas artes marciais, absorva o útil, rejeite o inútil. Então, tem meditação, controle da mente, da respiração e da fisiologia, mas tem coisas também que os cristãos podem chamar de demoníaco, as invocações da Goécia, por exemplo, apesar de terem um significado complexo. O pessoal se contenta normalmente em parar nas frases de efeito, mas Crowley deixou as pistas dele espalhadas ao longo de seus trabalhos. É preciso aprender a lê-lo”, afirmou.
A mais equilibrada e precisa definição do sistema aperfeiçoado por Crowley foi provavelmente escrita pelo jornalista Mick Wall, biógrafo da banda de rock Led Zeppelin, criada por Page. Em Quando os gigantes caminhavam sobre a Terra (Editora Larousse), ele explica:
“Não estamos falando de bruxaria simples, do tipo que costuma ser encontrado nos romances de Stephen King ou nos filmes de abracadabra de Harry Potter (embora muitos outros livros, filmes e outras famosas obras de arte incorporem elementos do ritual mágicko genuíno. Segundo Eliphas Levi, mágico e escritor do século 19, o conhecimento do oculto – isto é, o conhecimento oculto dos séculos que remonta à era pré-cristã, até a serpente e o Jardim do Éden – é um produto de equações filosóficas e religiosas tão exatas quanto as de qualquer ciência. Além disso, quem for capaz de adquirir tal conhecimento conseguir usá-lo de maneira correta se tornara imediatamente mestre dos outros que não têm a mesma habilidade.
Paracelso, um dos primeiros defensores da arte dos magos, escreveu no século 16: “A magia é uma grande sabedoria escondida... não há armadura que consiga dar proteção, pois ela atinge o espírito da vida. Disso podemos estar certos”. Ou, como Aleister Crowley – talvez o ocultista mais famoso depois de Merlin – afirmou em 1928, em seu Magick in theory and practice, o primeiro livro a despertar a atenção de Jimmy Page para as possibilidades do oculto: “A Magicka é a arte e ciência da mudança em conformidade com a vontade. (O K foi acrescentado por Crowley à palavra “magic” não só para diferenciar o que ele estava falando dos truques simples empregados pelos feiticeiros, mas também por questões ligadas ao ocultismo: as seis letras da palavra “magick” em inglês representavam um equilíbrio em relação à palavra original de cinco letras “magic”, equilibrando o hexagrama e o pentagrama, 5+6=11, o número geral da mágicka, ou energia que tende a mudar, como ele afirmou em seu livro de 1909, 777.)”
A partir da década de 1960, parte de seus conceitos foram absorvidos pela contracultura. Sua clássica careca aparece na ilustração do disco dos Beatles, Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band (1967), entre as figuras históricas e populares escolhidas pelo quarteto de Liverpool. Os Rolling Stones também tiveram seu flerte com as ideias dos excessos sexuais. Os exemplos mais notórios de artistas que fizeram trabalhos de fato inspirados nele são o guitarrista Jimmy Page, o cineasta Kenneth Anger e, obviamente, Raul Seixas e Paulo Coelho. Sua mensagem se popularizou, mas não sem ruídos.
Na esteira desta proliferação de ordens secretas, disse ele, houve até a insólita vinda ao Brasil do escritor e ocultista americano Lon Milo DuQuette - especialista na obra de Crowley, “oficial administrativo nacional e internacional” da O.T.O. desde 1975 e “vice grão mestre” da ordem nos Estados Unidos desde 1994, segundo seu website. DuQuette, famoso por sua visão bem-humorada sobre o ocultismo, foi a um hospital do Rio encontrar Euclydes, que convalescia de seu terceiro enfarte.
Comentei como parecia difícil ter a lucidez de negar o papel de proeminência que todos ansiavam por lhe oferecer. “Eu o admiro muito por causa disso. Ele podia ter assumido tudo! Mas disse ‘não, eu não sou nada disso, sou um cara como outro qualquer’”. Euclydes concordou comigo que Crowley possuía a mesma característica. “É, sim, ele mesmo dizia: ‘não acreditem em mim!’”. Afirmei, então, acreditar que Crowley deliberadamente não deixara um herdeiro inequívoco. A reação foi entusiasmada. “Ele fez igual ao Alexandre (Magno). Você sabe o que o Alexandre fez? Pegou os quatro generais dele e disse ‘o mais forte será o meu sucessor’. Apareceu Ptolomeu, apareceu uma porção de gente. Ele não entregou nada! O cara que tomasse! É o que tá escrito no Livro da Lei. É a Lei do mais forte. ‘Os escravos servirão’. Quem segue Crowley como homem é um escravo, porra! É um escravo!”